O jardim de caminhos que se encontram (algumas palavras sobre o conto de Borges e o filme de Tom Tykwer)

Roberto Azoubel

(Este texto é dedicado ao professor e poeta Jorge Wanderley (em memória) que me "incomodava" com Borges e com a literatura.)

 

Uma das tarefas mais importantes da arte foi sempre a de gerar uma demanda cujo atendimento integral só poderia produzir-se mais tarde."

Walter Benjamim

 

I1.

Com o desenvolvimento da imprensa no começo do século XX, o romance - forma literária intrinsecamente ligada ao objeto livro — emerge em sintonia com toda a evolução das forças produtivas da sociedade, tornando-se um gênero de grande difusão no mundo. Tal difusão levou o filósofo alemão Walter Benjamim a se preocupar com a morte do narrador — aquele do discurso vivo — como podemos observar no texto O Narrador, escrito em 1936.

O texto de Benjamim nos remete a uma recente discussão que seria a factível morte da literatura diante do crescimento da produção cinematográfica que se espalha pelo planeta. Proponho-me neste texto analisar justamente esta contenda, assumindo posições que ficarão nítidas no decorrer do seu corpo. Para tal empreitada, tomo como referências o conto O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam, escrito em 1941 pelo argentino Jorge Luis Borges, e o fresquíssimo Corra Lola, Corra (Lola Rennt), filme alemão realizado pelo diretor e roteirista Tom Tykwer.

 

II

Para chegarmos ao conto de Borges, passemos antes por Italo Calvino. No capítulo chamado "Multiplicidade" do seu livro Seis Propostas para o Próximo Milênio, Calvino destaca como uma das (boas) características da literatura contemporânea essa capacidade de estabelecer redes de conexões entre os acontecimentos, entre as pessoas, entre as coisas do mundo, em outras palavras, essa capacidade atual de a escritura poder ser múltipla.

No decorrer do capítulo, o autor italiano mostra várias formas de multiplicidades que ocorrem na literatura. No entanto, para não sairmos do foco da discussão do texto, fiquemos inicialmente com o exemplo do romancista italiano Carlo Emilio Gadda, de quem, entre outros autores, Calvino se serve como ilustração.

Segundo Calvino (1990: 121), "Gadda durante toda a sua vida buscou representar o mundo como um rolo, uma embrulhada, um aranzel, sem jamais atenuar-lhe a complexidade inextricável – ou, melhor dizendo, a presença simultânea dos elementos mais heterogêneos que concorrem para a determinação de cada evento". E mais adiante, apoiado no ensaio La disarmonia prestabilita do crítico Gian Carlo Roscioni, Calvino ainda coloca que "esse conhecimento das coisas enquanto ‘relações infinitas, passadas e futuras, reais e possíveis, que para elas convergem’, exige que tudo seja exatamente denominado, descrito e localizado no espaço e no tempo"(CALVINO, 1990:123).

Outros romancistas como Proust e George Perec, com o seu A Vida Modos de Usar, são citados no capítulo como exemplos de uma escritura que conduz à multiplicidade (de caminhos, de níveis, de pensamentos, de vozes etc.). Mas, de acordo com Calvino, esse modelo de redes possíveis pode ser construído tanto em romances extensos, como pode ser concentrado nas poucas páginas de um conto de Borges. Chegamos assim a’O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam.

O conto, classificado pelo autor como policial, narra o percurso do personagem principal da cama até o jardim em que comete um assassinato como estratégia de sua missão de espionagem. No entanto, no seu enredo (e aqui também me apoio na leitura que Calvino faz dele) Borges desenvolve várias noções acerca do tempo.

No início, enquanto o protagonista está no seu quarto se preparando para realizar sua incumbência, o autor expõe um tempo preciso e no presente: "refleti que tudo aquilo que acontece com alguém, acontece agora, precisamente agora. Séculos de séculos e apenas no presente ocorrem fatos; inumeráveis homens no ar, na terra e no mar e tudo o que realmente sucede, sucede a mim..." (BORGES, 1995: 94). Em seguida, Calvino, ainda no seu Seis Propostas..., relata que Borges mostra "uma idéia de tempo determinado pela vontade, no qual o futuro se apresenta tão irrevogável quanto o passado"(CALVINO, 1990: 134). Por último, a idéia de um tempo múltiplo, que é a idéia central do conto e, afinal, o que nos interessa aqui. Veremos abaixo como essa idéia de um tempo múltiplo se apresenta no conto.

Ao chegar numa casa de portão alto, o protagonista é recebido por sua futura vítima, Stephen Albert, sujeito que fora encarregado de decifrar um enigma do livro escrito por Ts’ui Pen. Este, que era um antepassado do próprio personagem principal, tinha abandonado sua próspera vida (era governador de sua província, doutor em astronomia, em astrologia, enxadrista, calígrafo e famoso poeta) para compor um labirinto e um livro. No entanto, o enigma revelado por Albert é justamente que o livro e o labirinto são o mesmo objeto. A chave para a descoberta estava num fragmento de uma carta deixada por Ts’ui Pen, no qual estava escrito: "Deixo aos vários futuros (não a todos) meu jardim de caminhos que se bifurcam"(BORGES, 1995: 94).

Faço aqui uma transcrição editada (para não me estender muito) do relato do personagem Stephen Albert sobre o caminho que ele percorreu para revelar o enigma:

— Antes de exumar esta carta, eu tinha me perguntado de que maneira um livro pode ser infinito. Não conjeturei outro processo que o de um volume cíclico, circular. Um volume cuja a última página fosse idêntica à primeira, com possibilidade de continuar indefinidamente... Nessa perplexidade, remeteram-me de Oxford o manuscrito que o senhor examinou. Detive-me, como é natural, na frase: ‘Deixo aos vários futuros (não a todos) meu jardim de caminhos que se bifurcam’. Quase de imediato compreendi: o jardim de caminhos que se bifurcam era o romance caótico; a frase vários futuros (não a todos) sugeriu-me a imagem da bifurcação no tempo, não no espaço. A releitura geral da obra confirmou essa teoria. Em todas as ficções, cada vez que um homem se defronta com diversas alternativas, opta por uma e elimina as outras; na do quase inextricável Ts’ui Pen, opta – simultaneamente – por todas. Cria, assim, diversos futuros, diversos tempos, que também se proliferam e se bifurcam. Daí as contradições do romance (...)" (BORGES, 1995: 100-101).

        Logo em seguida, o personagem Albert mostra que é justamente o problema do tempo o que mais incomodava Ts’ui Pen e que este será o grande tema do Jardim. Albert relata que ao fazer a tradução do livro constatou que o autor em nenhum momento usa a palavra tempo e que isso era uma explicação de que O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam é uma imagem incompleta, mas não falsa, de como Ts’ui Pen concebia o universo. Ao explicar a questão ao protagonista, ele coloca: "Diferentemente de Newton e de Schopenhauer, seu antepassado não acreditava num tempo uniforme, absoluto. Acreditava em infinitas séries de tempos, numa rede crescente e vertiginosa de tempos divergentes, convergentes e paralelos. Essa trama de tempos que se aproximam, se bifurcam, se cortam ou que secularmente se ignoram, abrange todas as possibilidades" (BORGES, 1995: 3).

        Sem maiores delongas, o conto termina com o assassinato do Albert pelo protagonista como uma estratégia de sua missão. No entanto, muito mais do que o desfecho, o que nos interessa aqui é justamente o que está no enredo, ou seja, como Borges nos oferece, através de um livro imaginado (O Jardim...) essa possibilidade de uma história que pode se desenvolver fora de um tempo absoluto, uma história que pode tomar várias trajetórias paralelas ou, como o próprio nome da obra fictícia, muitos caminhos que se bifurcam. Podemos agora seguir para o filme.

 

III

        Antes de chegarmos em "Corra Lola, Corra", voltemos a Walter Benjamim (1993: 185), que no seu texto A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica escreve a seguinte passagem:

Toda forma de arte amadurecida está no ponto de intersecção de três linhas evolutivas. Em primeiro lugar, a técnica atua sobre uma forma de arte determinada. Antes do advento do cinema, havia álbuns fotográficos, cujas imagens, rapidamente viradas pelo polegar, mostravam ao espectador lutas de boxe ou partidas de tênis, e havia nas Passagens aparelhos automáticos, mostrando uma seqüência de imagens que se moviam quando se acionavam uma manivela. Em segundo lugar, em certos estágios do seu desenvolvimento as formas artísticas tradicionais tentam laboriosamente produzir efeitos que mais tarde serão obtidos sem qualquer esforço pelas novas formas de arte. Antes que se desenvolvesse o cinema, os dadaístas tentavam com seus espetáculos suscitar no público um movimento que mais tarde Chaplin conseguiria provocar com muito maior naturalidade. Em terceiro lugar, transformações sociais muitas vezes imperceptíveis acarretam mudanças na estrutura da recepção, que serão mais tarde utilizadas pelas novas formas de arte. (BENJAMIN, 1993: 185).

Guardemos o trecho acima, pois voltaremos a ele mais adiante, e vamos ao filme de Tom Tykwe realizado no ano de 1998. Longe de tratar dos seus aspectos técnicos, tais como a utilização de desenho animado servindo de apoio para a trama, a elogiada trilha sonora no gênero tecno, entre outros (particularidades que o levaram a ser classificado como pós-MTV, ou como filme-videogame), detenho-me aqui na sua estrutura narrativa. Tentarei resumi-la, sem me ocupar com os detalhes da trama.

Na película, Lola, a protagonista, tem apenas vinte minutos para conseguir 100 mil marcos e salvar a vida do namorado, Manni, que se meteu em confusão ao perder, numa tarefa que lhe foi confiada, a quantia referida a ser entregue a seu patrão (um tipo meio gangster). Esta é a sinopse do filme (até então, nada de mais). O que acontece é que o diretor oferece ao espectador três caminhos para o desenlace dessa história.

O primeiro destes caminhos termina com o assassinato de Lola após uma tentativa frustrada de assalto a um supermercado em companhia de Manni. No drama da morte da personagem principal, o filme volta ao momento em que Lola fica sabendo do desafio, iniciando, assim, um outro trilho. Nessa Segunda jornada, é Manni quem morre atropelado ao ouvir um grito de Lola no instante em que iria iniciar o referido assalto ao supermercado. Mais uma vez o filme retorna ao instante inicial do desafio da protagonista para iniciar o terceiro e derradeiro caminho que, finalmente, acaba de forma feliz, com Manni reavendo o dinheiro perdido e, ainda, Lola conseguindo a quantia desejada após apostas em um cassino. Em cada um dos três percursos, o diretor mostra que pequenos acontecimentos acabam por determinar o destino dos personagens, fazendo com que imaginemos tantas outras possibilidades para cada um dos caminhos expostos.

IV

Após as breves exposições do conto de Borges e do filme de Tom Tykwer, parece-me que ambos realmente representam essa característica múltipla da narrativa a que se refere Italo Calvino no Seis Propostas para o Próximo Milênio. Tanto o livro fictício O jardim de caminhos que se bifurcam quanto "Corra Lola, Corra", jogam ou brincam com essa possibilidade dos vários tempos (paralelos, convergentes, divergentes), essa possibilidade dos vários futuros, como uma oposição ao tempo absoluto. No entanto, uma diferença se impõe entre as obras. O jardim de caminhos que se bifurcam existiu apenas como "idéia" de livro, nunca se concretizou como tal, enquanto que "Corra Lola, Corra" é uma história materializada em película que corre o mundo.

Aproveito o que foi dito no parágrafo anterior para retomar o trecho do Walter Benjamim citado acima. Quando o filósofo alemão afirma que "em certos estágios do seu desenvolvimento as formas artísticas tradicionais tentam laboriosamente produzir efeitos que mais tarde serão obtidos sem qualquer esforço pelas novas formas de arte", imediatamente correspondo a frase às duas obras observadas. Percebo na projeção do filme alemão a realização do livro fictício do conto de Borges. Realização não da história que estava contida nele (esta ninguém pode saber, nem mesmo o próprio autor sabia!), mas na capacidade dos vários desfechos em um só enredo.

Quero retomar Benjamim também para discutir a questão levantada no texto O Narrador, que também foi colocada, em outros moldes, na primeira parte deste trabalho: a tese da superação de uma forma de expressão artística com o advento de outra mais recente.

Assumo aqui o direito de não acreditar em tal proposição. Assumo baseado na própria relação estabelecida entre o conto e o filme tratados acima. Não me parece que o aproveitamento e a possibilidade de concretização da idéia de Borges por parte do diretor Tom Tykwer (e aqui não cabe a discussão se este último conhecia ou não O Jardim...) se apresente como uma sobreposição do cinema em detrimento da literatura.

Como já afirmava o próprio Benjamim, "uma das tarefas mais importantes da arte sempre foi a de gerar uma demanda cujo atendimento integral só poderia produzir-se mais tarde" (BENJAMIN, 1993:190). Parece-me que é exatamente esta tarefa que o conto de Borges realiza se o olharmos em relação ao filme de Tykwer. Vejo, assim, a literatura, afirmando-se como arte e cumprindo seu ofício.

O aproveitamento por parte do cinema de histórias provenientes da literatura não é nenhuma novidade, temos inúmeros exemplos. No entanto, o que ocorre no caso analisado aqui, como podemos observar, não é o simples aproveitamento de um relato (o que nem acontece!), mas sim da própria estrutura literária contida num livro que estava dentro do conto. Dito isso, posso agora fazer a pergunta: e quantas outras estruturas de narrativas a serem filmadas estariam escondidas, ou ainda poderiam se esconder em tantas outras obras de literatura?

Para que as narrativas literárias ainda se escondam e, conseqüentemente, explodam em várias outras formas artísticas (formas talvez que ainda nem conhecemos), precisamos de escritores. Pois, tal como ela se afirma através do filme "Corra Lola, Corra", remetendo-nos às criações de Borges, ela pode se apresentar em outros redutos. Mas, para isso, como diria Calvino, a literatura tem de se propor objetivos desmesurados, "até mesmo para além de suas possibilidades de realização"(CALVINO, 1990: 127). Foi o que fez Jorge Luis Borges.

 

1 N. E. (estratégia sintática de responsabilidade do autor).


Referências Bibliográficas

Benjamim, Walter. Obras Completas – volume 1. São Paulo: Editora Brasiliense, 1993.

Borges, Jorge Luis. Ficções. São Paulo: Editora Globo, 1995.

Calvino, Italo. Seis Propostas para o Próximo Milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

Filmografia

Corra Lola, Corra (Lola Rennt).
Roteiro e direção de Tom Tykwer. Alemanha, 1998.

Websites Consultados

www.zaz.com.br/cinema/acao/lola.html
www.cinetv.com.br/arquivo/lola.html
www.estacaovirtual.com.br/festival/catalogo/pan/corralolacorra.html
www.cinemascopio.com.br